Estradas da memória

DE BRISAS E EUFORIA
Jonas Duarte
De repente me vejo em frente ao antigo cinema Babilônia, na Irineu Joffilly. Difícil prender a memória. Segurar o desembestar das idéias, correndo para trás num galope vibrante. As imagens dos anos 80 me chegam tão forte que escuto os sons da multidão juvenil, cabelos ao vento, roupas surradas, punhos serrados, gritando palavras de ordem contra a ditadura. Me vejo jovem, forte, músculos tônicos, com o vozeirão dos Trovões, embalando a moçada: “Vai avançar, vai avançar o movimento popular. Pra derrubar, pra derrubar a Ditadura Militar. Vai avançar, vai avançar....” Vejo Pedro ao meu lado rindo “mangando de mim”, os colegas da universidade. A tentativa de iniciar uma nova palavra de ordem. Que fosse mais criativa e dissesse mais dos nossos sonhos. As que surgem são fracas, mesmo mesquinhas, então voltamos a repetir uma das mais batidas: “Arroz, feijão, saúde educação...” e depois: “O povo unido jamais será vencido....”.
A sensação de lembrar aqueles tempos é gostosa. O frio do final da manhã de um agosto chuvoso parece apenas aquecer minha vontade de reviver aqueles dias. Me encorajo e entro no prédio do antigo Babilônia, agora um shopping center. Cheio de jovens de um colégio particular visinho. Procuro na memória meu lugar preferido no cinema, onde assisti o documentário “Jango” de Sílvio Tendller, “O Nome da Rosa”, “Chove sobre Santiago”, “Salvador, Martírio de um povo”. Onde assistíamos as semanas “Carlitos”, não encontro. O Shopping é “A Caverna” de Saramago.
Esquisito o melhor cinema da cidade virar Shopping. Tento buscar na memória o velho Babilônia e não encontro. Vejo ali um monte de lojas minúsculas com um amontoado de peças. Parece sempre saldos, sobras. Muitas lojas fechadas. Meu costume de analisar a economia indica logo que ali várias vão quebrar. Não sei como esses mini-shoppings conseguem funcionar. Não vejo ninguém comprando. Só a gurizada passeando e sorrindo. É muito agradável ver os jovens rindo. Procuro escutar a conversa dos adolescentes, mas também não as entendo. Constato, no entanto, a mesma beleza da juventude em qualquer época e em qualquer condição. Talvez numa época de despolitização em que vivemos onde os shoppings substituíram os cinemas e para ir ao cinema tem-se que adentrar um shopping, os jovens se comportem diferentes. Tenham mentalidades e valores diversos da nossa geração. Como se diz, os tempos são outros.
No final dos anos 70 e início dos anos 80 lutávamos contra a ditadura militar. Era a tarefa da juventude. Mesmo os mais “alienados”, se é que existe isso, marchavam com os de “vanguarda”. A ditadura era algo muito injusto e horrível. E, naqueles tempos, a crise econômica crônica, a inflação desenfreada (chamávamos de carestia), impelia-nos à mesma luta: liberais e socialistas; jovens interessados em outras coisas (namoro, por exemplo), menos politizados e jovens idealistas, já militantes de alguma forma mais orgânica de movimento.
Saíamos do campus da UFPB em Bodocongó, subíamos pela Volta de Zé Leal, contornávamos a rua do Arrojado e tomávamos a João Pessoa – parecia, inconscientemente, percorrermos as músicas de Jackson do Pandeiro falando de Campina Grande (Severino Serrotão, lá de Campina Grande....). Nesse percurso tinha mais gente, cruzávamos as ruas com mais casas e, inclusive, cruzávamos o comércio da cidade, terminando as passeatas na Marquês do Herval, onde, na Praça da Bandeira, tornava-se um “Ato” de protesto. Ali a brisa deliciosa da Borborema nos brindava. Os discursos inflamados, as palavras de ordem firmes contrariavam o vento gelado que soprava do Leste, seguindo a Floriano Peixoto. Naqueles fins de tarde e início de noite sempre aparecia alguém com violão, subia o “púpito” e entoávamos o hino: “Caminhando e cantando e seguindo a canção somos todos iguais braços dados ou não....”
Outro dia assisti o documentário Tempo de Resistência e uma frase do nosso amigo Wanderley Caixe me ficou na memória. Ele disse mais ou menos o seguinte: “nós que lutamos contra a ditadura, que pegamos em armas contra a ditadura, contamos isso com orgulho aos nossos filhos e netos. Eles, os ditadores, os torturadores, os repressores procuram esconder de seus filhos e netos sua participação, mesmo que mínima, de alguma forma naquele Regime, pois se envergonham”. A História é implacável.
Eu não peguei em arma. Não cheguei a ser guerrilheiro. Acho que não houve tempo pra isso. Talvez pudesse ter sido. E me orgulharia. Como me orgulho de ter atravessado Campina várias vezes entoando gritos e canções contra a ditadura e a espoliação das massas trabalhadoras, algumas sob o sol causticante do meio dia, embora depois que conheci e vivi em João Pessoa e no Sertão, sempre considere a temperatura de Campina amena, quando não fria.
O que contarão esses jovens que entopem os shoppings, não para ir ao cinema, mas para desfilar marcas? Que histórias contarão aos seus filhos e netos? Que se empanturravam de refrigerantes e frituras!!! Enquanto seus pais adquiriam o mais novo modelo importado de automóvel??? Pode ser que essa seja a razão da vida. Na realidade é a razão de vida de muitos – adquirir o mais confortável e mais caro automóvel importado no mercado. Cada um com seu ideal....
Muitos daqueles que conosco gritavam por liberdade, justiça e igualdade, hoje pensam, gritam e cantam: money money money money.... Como em Cabaré.
Da euforia dos anos oitenta sopra uma ventania, embora inebriante, calma, que tenta afogar a brisa fria, às vezes gelada do tempo presente, tentando congelar as idéias, eliminar a memória, esquecer o mundo... Mas a algazarra juvenil aquece o tempo....Felizmente.

Jonas.